terça-feira, março 21, 2017

PELA NOITE, COM HERBERTO HELDER: "O POEMA"



O POEMA

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só feracidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
rios, a grande paz exterior das coisas, 
folhas dormindo o silêncio
- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
e as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das coisas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

- E o poema faz-se contra a carne e o tempo.


HERBERTO HELDER,
in "Poemas Completos", pág. 28




Herberto Helder nasceu no Funchal, na ilha da Madeira, em 1930, no seio de uma família de origem judaica. Em 1946, veio para Lisboa, onde terminou o liceu. Depois de uma rápida passagem pelo curso de Direito, em Coimbra, frequentou durante três anos a Faculdade de Letras de Lisboa.

Em 1955, após um breve regresso à Madeira, Herberto Helder regressa de novo em Lisboa e frequentando o Café Gelo, ao lado de Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo, colaborando em várias publicações literárias. Publica o seu primeiro livro, O Amor em Visita, em 1958.
Ao longo dos anos, Herberto Helder desempenhou várias profissões e viajou para vários países estrangeiros. Personagem discretíssima, foi distinguido em 1983 com o Prémio de Poesia do Pen Club Português, pelo livro A Colher na Boca. Em 1994, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa pelo conjunto da sua obra, distinção que recusou.

Algumas obras do autor:

Poesia:

O Amor em Visita (1958)
A Colher na Boca (1961)
Poemacto (1961)
O Bebedor Nocturno (1968)
Poesia Toda (várias actualizações desde 1981)
A Cabeça entre as Mãos (1982)
Última Ciência (1988)
Do Mundo (1994)
Ou o Poema Contínuo (2001)

Ficção:

Os Passos em Volta (1963)

Voz: Luís Gaspar



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